Publicado em 29/09/2023 às 15:05

Tornar-se rio

O menino acreditava que o rio carregava lágrimas. A serenidade do leito levava o pranto para um lugar distante. Não era preciso chuva para fazer transbordar o rio. Bastavam as lágrimas dos desconhecidos moradores.

O pequeno sentava-se na barranca nos entardeceres. No leito de águas mortas, os sapos silenciavam para escutá-lo. Os bichos, quietinhos, compadeciam-se com a lástima que escorria pelo rosto do menino.

Sobreviventes naquele imundícia, os peixinhos às vezes esperavam uma solitária lágrima, talvez, ainda esperançosos, acreditassem que um farelo de pão pudesse cair nas águas tristes.

A mãe espiava pelasfrestas do casebre o quadro de misérias pintado em tons dourados. Não havia outros matizes senão os que descoloriam a vida repleta de ausências.

O menino não sentia medo da escuridão, sabia caminhar pelas margens do Tristeza. Embora não soubesse nadar, não receava ser devorado pelo rio nas noites de tempestade.

Quando a escuridão tomava conta da vila, a mãe desesperava-se observando as prateleiras e as panelas vazias, sabia que logo em seguida o filho chegaria com olhos de fome.

O menino demorava-se para retornar ao casebre, permanecia por algum tempo sentado nas barrancas para contemplar as estrelas. Gostava também da lua, confiava a ela ternas palavras, segredos e desejos simples.

No silêncio das madrugadas, o guri escutava as lágrimas precipitando-se no rosto materno. Acreditava que aquele choramingar alimentava o rio, que secaria sem lágrimas, então ele às vezes também chorava para ajudar a mãe a encher o córrego.

Os moradores não sabem muito bem como tudo aconteceu naquele amanhecer cinza, recordam apenas que as tormentas d’alma e do tempo aparecerem inclementes no horizonte.

O menino lembrou que o pranto fora abundante na noite anterior, não entendia a razão de o rio estar enfurecido, pensava que talvez fosse a desmedida lástima da madrugada, precisava acalmá-lo.

A guarnição dos bombeiros chegou no final da manhã. A mãe sentia-se culpada. O Tristeza transbordou por causa das lágrimas, o menino tornara-se rio na vida.

 

 



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