Publicado em 23/10/2021 às 13:00

A morte de Baio

O domador acordou antes do sol dourar o pampa. Cevou um mate com jujos para alimentar a alma. Com algum tempo disponível antes da lida, sentou-se no cepo para prosear com o cusco, como fazia desde quando o bicho era um filhote que cabia na palma da mão. 

Baio não atendeu aos chamados do domador. O fulgor pálido dos olhos noticiava que o velho companheiro estava adoecido. O peão aproximou-se do melancólico bicho. As mãos alisaram o pelo ralo. Não sabia o que dizer na hora da morte. 

O cachorro gostava dos olores do campo. Adorava correr e saltitar, imitando o voo das borboletas. O bicho vivia em plena harmonia com o verde das coxilhas e as flores do nhandavaí, bebendo água na sanga e brincando com o bicharedo. 

“O Baio tá morrendo”, gritou Anastácio, reclamando a presença da filha. A palavra morte significava ausência na família. O bicho movimentou os olhos na direção da pequena, suspirando com dificuldade, expressando a seu modo a derradeira tristeza. 

O cusco, intervalando apneias e respirações aceleradas, aproveitou a iminente morte para refletir sobre a vida. “Tudo representava apenas um ciclo biológico entre o nascer e o morrer?” 

“Bicho tem alma? Bicho sente saudade?” Não encontrou as respostas antes do último suspiro. “Morrer fazia parte do destino dos cachorros de estância; só isso, nascer, viver e morrer”. Estava pronto à morte. Todavia, resolveu pensar mais um bocado sobre a vida; sentiu medo de morrer. 

A valentia esvaziava-se na respiração ofegante, tinha pavor da solidão. O cachorro conjecturou a desgraça que seria se a morte significasse apodrecer sozinho no buraco de terra, devorado pelos bichos que habitavam o subterrâneo. Era o que sabia da morte, recordando dos bois que morriam na estiagem. 

A tordilha, o tatu-molita e o quero-quero nunca disseram algo sobre a finitude. O cusco desassossegou-se ao sentir as lágrimas da menina no seu focinho, e retribuiu o carinho com a lambida em despedida. 

O bem-querer doía bem lá no fundo das suas entranhas. O cusco respirou profundamente, olhou em derredor, mas já não distinguia as silhuetas. Ouviu pela última vez os sons do campo. O luzeiro impregnado nos olhos apagou-se no meio da tarde. 

  O cortejo seguiu em direção ao sepulcro. Nas proximidades da timbaúva, o buraco foi aberto por Anastácio. A rudeza de sua mão tocava amavelmente o bicho. A minguada sanga, meio sem forças, desviando-se das pedras, arrastava em seu leito os lambaris e o pranto para o grande rio. Anoiteceu no pampa enluarado e triste. 




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