Publicado em 25/09/2021 às 10:00

Amada também é amor

Eu estava repleto de trabalho e outras coisas para fazer, tinha deixado a literatura de lado por alguns dias, precisava cumprir prazos; definitivamente, não tinha tempo para começar um novo livro. 

- Velho, tem que ler ‘Amada’.

A mensagem do Domingos parecia um projétil dilacerando todos os tecidos da minha resistência. “Tem que ler” era uma inequívoca ordem que precisava ser cumprida com urgência. Lá fui eu, talvez em menos de um minuto, comprar o romance da Toni Morrison, primeira mulher negra a ganhar o Nobel de Literatura (1993).

Domingos é um amigo mineiro. É uma dádiva de Minas Gerais para o Rio Grande. É um jurista refinado, escritor de peculiar sensibilidade, músico e estupendo conhecedor da alma humana; e, acima de tudo, um ótimo parceiro para trocar um dedo de prosa e tomar uma cervejinha. 

O livro é perturbador. A lavra de Morrison nos causa profundo sofrimento, colocando-nos em dúvida sobre a nossa humanidade. Trata-se de uma experiência literária esplendorosa. A leitura exige bastante do leitor, mas o resultado é gratificante; sublime. 

A estrutura narrativa é não linear, diz sobre as memórias do período escravocrata estadunidense, e cada linha nos convence de que a escravidão foi o maior horror do processo civilizatório. 

A leitura, dolorida, assustadora, cheia de labirintos, às vezes precisa ser interrompida à retomada do fôlego. O livro Amada também nos revela o quanto é possível nos depararmos com peculiares formas de amar na adversidade embrutecida:

“Para uma mulher que era escrava, amar alguma coisa tanto assim era perigoso, principalmente se era a própria filha que ela havia resolvido amar.”

E foi a indicação literária do querido amigo que me fez trocar a escrita da coluna. Amar aparece como o esquema-chave à sociedade brasileira. Somente superaremos os horrores ainda existentes quando estendermos a mão ao irmão, amando-o. Num Brasil de ruas cinzas, compartilhar o pão é bem-querer o descalço. 

O amor encontra-se fluído no ar, precisamos aprender a inspirá-lo. E encher os alvéolos pulmonares, e a corrente sanguínea, e o coração de doses de amar, e amar, expirando. É a melhor receita contra a desumanização; simplesmente amar. 

Como recomendou Pepe Mujica, no histórico discurso de renúncia perante o Senado uruguaio, não podemos cultivar o ódio em nosso jardim. As flores da primavera pandêmica floresceram; amá-las é preciso. Amada, que obra!



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