“Tudo é um mar sereno em mim”,
disse, em voz trêmula, a mãe negra.
Ela
sabia que o ventre era tão diferente do desconhecido mundo de desiguais
matizes. As águas não eram aquelas singradas pelos tumbeiros com milhões de
corpos negros apartados para sempre de suas famílias.
O
menino está quietinho na barriga. Recebe afetos ancestrais. Não se importa com
o balouçar das águas mornas, não sabe dos açoites que torturavam negros para a
produção de riquezas no território colonial.
A
mãe, angustiada com os desafios do tornar-se negro, recorda-se da suspeição
generalizada que alicerçou o controle social brasileiro a partir do Séc. XIX.
Desde então, a fundada suspeita é representada no imaginário coletivo pelo
negro distante da unidade produtiva escravocrata.
“Quanto
nos devem pelos séculos de trabalho não remunerado? Talvez o país inteiro”,
delibera a mãe. Depois, quando arrebentaram os grilhões da escravidão,
aprisionaram a população negra nas periferias: sem educação, saúde, terra e
trabalho.
O
olhos noturnos, brilhantes, apavorados, buscam no espelho a compreensão para o
perfilamento racial nas abordagens policiais. Como explicar ao menino as
fronteiras internas racialmente construídas?
Racismos?
As
violências e as dores são plurais diante das práticas e discursos que buscam
subalternizar o negro. O menino saberá um dia que a democracia racial relegou
aos negros a condição de explorado, sem acesso aos espaços de poder.
“A
desconstrução da classe trabalhadora negra ainda está nos porões da história”,
pondera a mãe.
“Mamãe,
por que ela tá chorando na televisão?”
O
pranto materno é um protesto pela “bala perdida” do Estado que outra vez
perfurou a inocente pele preta.
“Ele
está seguro no meu ventre. Maldito contrato”, pensa a negra.
Cárcere,
homicídios e letalidade policial em desfavor dos jovens negros são cláusulas
vigentes no contrato racial brasileiro.
As
políticas afirmativas descortinaram um novo horizonte, insuficientes, porém,
para superar os séculos de desumanização e pauperização. O Brasil precisa de um
novo pacto moral, político e econômico à equidade racial.
“O
meu menino não vai assinar”, refletiu a mãe, no Dia da Consciência Negra.
Karen Santos – Vereadora/Porto
Alegre
Andrey Melo – Defensor Público