Publicado em 17/11/2023 às 16:12

O contrato racial

“Tudo é um mar sereno em mim”, disse, em voz trêmula, a mãe negra.

                Ela sabia que o ventre era tão diferente do desconhecido mundo de desiguais matizes. As águas não eram aquelas singradas pelos tumbeiros com milhões de corpos negros apartados para sempre de suas famílias.

                O menino está quietinho na barriga. Recebe afetos ancestrais. Não se importa com o balouçar das águas mornas, não sabe dos açoites que torturavam negros para a produção de riquezas no território colonial.

                A mãe, angustiada com os desafios do tornar-se negro, recorda-se da suspeição generalizada que alicerçou o controle social brasileiro a partir do Séc. XIX. Desde então, a fundada suspeita é representada no imaginário coletivo pelo negro distante da unidade produtiva escravocrata.

“Quanto nos devem pelos séculos de trabalho não remunerado? Talvez o país inteiro”, delibera a mãe. Depois, quando arrebentaram os grilhões da escravidão, aprisionaram a população negra nas periferias: sem educação, saúde, terra e trabalho.

                O olhos noturnos, brilhantes, apavorados, buscam no espelho a compreensão para o perfilamento racial nas abordagens policiais. Como explicar ao menino as fronteiras internas racialmente construídas?

                Racismos?

                As violências e as dores são plurais diante das práticas e discursos que buscam subalternizar o negro. O menino saberá um dia que a democracia racial relegou aos negros a condição de explorado, sem acesso aos espaços de poder.

                “A desconstrução da classe trabalhadora negra ainda está nos porões da história”, pondera a mãe.

                “Mamãe, por que ela tá chorando na televisão?”

                O pranto materno é um protesto pela “bala perdida” do Estado que outra vez perfurou a inocente pele preta. 

                “Ele está seguro no meu ventre. Maldito contrato”, pensa a negra.

                Cárcere, homicídios e letalidade policial em desfavor dos jovens negros são cláusulas vigentes no contrato racial brasileiro.

                As políticas afirmativas descortinaram um novo horizonte, insuficientes, porém, para superar os séculos de desumanização e pauperização. O Brasil precisa de um novo pacto moral, político e econômico à equidade racial.

“O meu menino não vai assinar”, refletiu a mãe, no Dia da Consciência Negra.

 

Karen Santos – Vereadora/Porto Alegre

Andrey Melo – Defensor Público



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