sábado, 27 de julho de 2024
Publicado em 10/11/2023 às 16:05

O retrato do cadáver

Não gosto de emprestar livros.

                Penso que não se trata de um comportamento isolado, muitas pessoas também não cedem os seus livros, então acredito que a patologia não é grave.

                Não sei bem ao certo quando emprestá-los tornou-se um fator ansiogênico. Lembro que sempre anotava em um papel a data da devolução, afixando-o na parede do quarto. Padecia com o descumprimento do prazo acordado no empréstimo.

                Depois de alguns anos, aprendi a dizer um solene não, apenas indicava o local onde era vendido, permitia consultas em minha casa e providenciava uma cópia quando indisponível para compra.

É verdade que às vezes doava algum livro sem serventia para mim, antes, porém, elaborava um criterioso prognóstico acerca da impossibilidade de uma única frase ser útil no futuro, mas jamais sofrer com a angústia provocada pela incerteza do retorno.

Enquanto escrevo a coluna, sinto que os livros me observam, talvez pensando algo tipo “o que o fofoqueiro está digitando sobre nós”, talvez discutindo uma vingança pelos recentes malsucedidos.

O ‘Psicologia das Massas’ (Freud) estava repleto de anotações, frases sublinhadas, post-its grudados nas páginas, já nos entendíamos pelo carinho das mãos, adorava acariciar a capa vermelha, a lombada de tecido preto tornava-o elegante.

Depois do desembarque em Brasília, ele morreu esquecido no veículo de aplicativo. Apesar das minhas súplicas pela devolução, o insensível motorista não respondeu aos pedidos de resgate.

Comprei outro exemplar: nunca mais tivemos a mesma relação afetiva.

‘A cabeça do santo” (Socorro Acioli) teve um destino trágico nas primeiras linhas. Hospedado na divisa com o Uruguai, onde participaria de um evento na Unipampa, fotografei o livro envolvido por macios lençóis. A foto, ainda na madrugada, foi postada na rede social.

O retrato fora o vaticínio do adeus.

Sonolento, arrumei a mala e não percebi a capa amarelo-canário aprisionada entre as cobertas. Retornava para Porto Alegre quando a imagem do cadáver sufocado irrompeu em minha cabeça.

O romance havia falecido na seara dos esquecidos literários. O corpo de papel tomado por livores cadavéricos jazia gélido à espera da camareira. Em delirante culpa por tê-lo abandonado, acomodei prontamente o gêmeo univitelino no carrinho de compras.



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