Não gosto de emprestar livros.
Penso
que não se trata de um comportamento isolado, muitas pessoas também não cedem
os seus livros, então acredito que a patologia não é grave.
Não
sei bem ao certo quando emprestá-los tornou-se um fator ansiogênico. Lembro que
sempre anotava em um papel a data da devolução, afixando-o na parede do quarto.
Padecia com o descumprimento do prazo acordado no empréstimo.
Depois
de alguns anos, aprendi a dizer um solene não, apenas indicava o local onde era
vendido, permitia consultas em minha casa e providenciava uma cópia quando
indisponível para compra.
É
verdade que às vezes doava algum livro sem serventia para mim, antes, porém,
elaborava um criterioso prognóstico acerca da impossibilidade de uma única
frase ser útil no futuro, mas jamais sofrer com a angústia provocada pela
incerteza do retorno.
Enquanto
escrevo a coluna, sinto que os livros me observam, talvez pensando algo tipo “o
que o fofoqueiro está digitando sobre nós”, talvez discutindo uma vingança
pelos recentes malsucedidos.
O
‘Psicologia das Massas’ (Freud) estava repleto de anotações, frases
sublinhadas, post-its grudados nas páginas, já nos entendíamos pelo carinho das
mãos, adorava acariciar a capa vermelha, a lombada de tecido preto tornava-o
elegante.
Depois
do desembarque em Brasília, ele morreu esquecido no veículo de aplicativo.
Apesar das minhas súplicas pela devolução, o insensível motorista não respondeu
aos pedidos de resgate.
Comprei
outro exemplar: nunca mais tivemos a mesma relação afetiva.
‘A
cabeça do santo” (Socorro Acioli) teve um destino trágico nas primeiras linhas.
Hospedado na divisa com o Uruguai, onde participaria de um evento na Unipampa,
fotografei o livro envolvido por macios lençóis. A foto, ainda na madrugada,
foi postada na rede social.
O
retrato fora o vaticínio do adeus.
Sonolento,
arrumei a mala e não percebi a capa amarelo-canário aprisionada entre as
cobertas. Retornava para Porto Alegre quando a imagem do cadáver sufocado
irrompeu em minha cabeça.
O
romance havia falecido na seara dos esquecidos literários. O corpo de papel
tomado por livores cadavéricos jazia gélido à espera da camareira. Em delirante
culpa por tê-lo abandonado, acomodei prontamente o gêmeo univitelino no
carrinho de compras.