Abrigado na pitangueira, o domador buscava entender as sombrias incertezas no horizonte. Sorvendo o amargor da solidão outonal, Anastácio, despretensiosamente, aproveitava para pensar na singularidade de sua vida no pampa.
O gaúcho é o brasileiro na estética do frio, conforme Ramil.
A figura de Anastácio vestido com o poncho de lã envelhecido evidencia um complexo atavismo multiétnico no alto da coxilha.
Milongas hermanas talvez consigam descrever o gaúcho. A genética das batalhas farroupilhas ainda ecoa em fervorosos dedilhares nos galpões imaginários do nosso tempo.
A essencialidade do fronteiro, missioneiro, serrano, litorâneo ou metropolitano é uma milonga muitas vezes não compreendida para além dos limites territoriais do garrão meridional.
Os gaúchos negros, indígenas e brancos, como na canção, aprendem “a ser valente, não ter medo, ter coragem”. Eles, então, valentemente, vivem, sobrevivem e desvivem nos rincões repletos de históricas contradições sociais: “lutar é a marca do campeiro”, cantaria Rassier.
Milonga é “mulonga”.
Mulonga, vocábulo de origem africana, significa “palavra”.
Palavra é prosear.
Prosear, para o domador da própria vida, é dizer, em silêncio, apenas o nada para o destino inclemente que desaba do firmamento.
O
domador sentia medo nas noites escuras.
Ele interpretava cientificamente o bailar do arvoredo, o voo sem rumo do biguá e o galope delirante do tostado em prelúdio ao aguaceiro sem fim.
Algumas vezes também sentia medo nos amanheceres.
A sanga tornou-se mar.
O mar doce arrastou os sonhos para o mar grande.
Sobrou o barro da desesperança. O barro de Nanã, porém, é o recomeço da vida; restou, então, a fé na reconstrução e a crença na mão do humano.Anastácio, que não possuía intimidade com as letras e ignorava a métrica dos poetas, assoviou uma milonga de afetos, e o vento arrastou para longe a desconhecida melodia.
O assovio, devagarzito, alcançou todas as regiões do Brasil. Com os acordes do coração, o domador, sem perceber, compôs uma milonga brasileira.
Anastácio,
acariciando o cusco encharcado, não tinha palavras para a solidariedade dos irmãos
brasileiros – milonga é palavra, era isso que sabia. O velho das indomáveis enchentes,
a seu modo, na ausência dos versos, assoviava gratidão.